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20 de Abril de 2024

Diante da lei e a loucura de pensar diferente

Publicado por Humberto Melo
há 9 anos

Por Thiago M. Minagé

Nos últimos dias, tenho sido bombardeado por centelhas de sentimentos e pensamentos contraditórios, questões que me inquietam ao ponto de me fazer perguntar a mim mesmo (desculpem a redundância): Será que estou certo? Será que não devo sucumbir aos ditames sociais e parar de tentar enxergar aquilo que “quase” ninguém enxerga?

O ceticismo por uma questão óbvia bate a porta da mente a todo o momento, querendo apenas entrar, para depois destruir tudo aquilo que lá dentro está. E confesso que é tentador deixar, abrir a porta, porque assim, sei lá, às vezes passo a entender melhor as pessoas e o mundo social/jurídico que vivo. Esse paradoxo de sentimentos que exprime uma ânsia em querer mudar o mundo e em determinado momento apenas a fraqueza de achar que a luta é em vão, possui um silêncio ensurdecedor.

A única forma que encontro de me livrar dessa angustia, é procurar ler, ver e ouvir o que me faz bem. Por isso retomei o velho hábito de ler Franz Kafka, e dentre os trechos mais marcantes, separei este que reflete bem o momento jurídico vivido, nesse mundo normal onde sou um louco perambulando por ele.

(Diante da lei – Franz Kafka)

Diante da Lei está um guarda. Vem um homem do campo e pede para entrar na Lei. Mas o guarda diz-lhe que, por enquanto, não pode autorizar-lhe a entrada. O homem considera e pergunta depois se poderá entrar mais tarde. -“É possível” – diz o guarda. -“Mas não agora!”. O guarda afasta-se então da porta da Lei, aberta como sempre, e o homem curva-se para olhar lá dentro. Ao ver tal, o guarda ri-se e diz. -“Se tanto te atrai, experimenta entrar, apesar da minha proibição. Contudo, repara, sou forte. E ainda assim sou o último dos guardas. De sala para sala estão guardas cada vez mais fortes, de tal modo que não posso sequer suportar o olhar do terceiro depois de mim”.

O homem do campo não esperava tantas dificuldades. A Lei havia de ser acessível a toda a gente e sempre, pensa ele. Mas, ao olhar o guarda envolvido no seu casaco forrado de peles, o nariz agudo, a barba à tártaro, longa, delgada e negra, prefere esperar até que lhe seja concedida licença para entrar. O guarda dá-lhe uma banqueta e manda-o sentar ao pé da porta, um pouco desviado. Ali fica, dias e anos. Faz diversas diligências para entrar e com as suas súplicas acaba por cansar o guarda. Este faz-lhe, de vez em quando, pequenos interrogatórios, perguntando-lhe pela pátria e por muitas outras coisas, mas são perguntas lançadas com indiferenca, à semelhança dos grandes senhores, no fim, acaba sempre por dizer que não pode ainda deixá-lo entrar. O homem, que se provera bem para a viagem, emprega todos os meios custosos para subornar o guarda. Esse aceita tudo mas diz sempre: -“Aceito apenas para que te convenças que nada omitiste”.

Durante anos seguidos, quase ininterruptamente, o homem observa o guarda. Esquece os outros e aquele afigura ser-lhe o único obstáculo à entrada na Lei. Nos primeiros anos diz mal da sua sorte, em alto e bom som e depois, ao envelhecer, limita-se a resmungar entre dentes. Torna-se infantil e como, ao fim de tanto examinar o guarda durante anos lhe conhece até as pulgas das peles que ele veste, pede também às pulgas que o ajudem a demover o guarda. Por fim, enfraquece-lhe a vista e acaba por não saber se está escuro em seu redor ou se os olhos o enganam. Mas ainda apercebe, no meio da escuridão, um clarão que eternamente cintila por sobre a porta da Lei. Agora a morte está próxima.

Antes de morrer, acumulam-se na sua cabeça as experiências de tantos anos, que vão todas culminar numa pergunta que ainda não fez ao guarda. Faz-lhe um pequeno sinal, pois não pode mover o seu corpo já arrefecido. O guarda da porta tem de se inclinar até muito baixo porque a diferença de alturas acentuou-se ainda mais em detrimento do homem do campo. -“Que queres tu saber ainda?”, pergunta o guarda. -“És insaciável”.

-“Se todos aspiram a Lei”, disse o homem. -“Como é que, durante todos esses anos, ninguém mais, senão eu, pediu para entrar?”. O guarda da porta, apercebendo-se de que o homem estava no fim, grita-lhe ao ouvido quase inerte: -“Aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar, porque só para ti era feita esta porta. Agora vou-me embora e fecho-a”.

Então percebo que, sobre a lei nos foi ensinado que todos são iguais perante ela. Será? Que os direitos de todos, previstos em lei (isso mesmo, apenas os que estão descritos na lei, mais do que isso, acho impossível) serão assegurados principalmente pelo estado (judiciário e Ministério Público). Será? Sempre existe uma barreira, e esse obstáculo sempre é mais forte do que nós.

Também nos foi ensinado que, o juiz (melhor, o judiciário) sempre fará justiça e o Ministério Público o fiel defensor e fiscal da lei. Será? Muitos ficam anos aguardando a benditajustiça, outros recebem ela de forma relâmpago. Não entendo o critério distintivo.-

Durante tempos, estudamos, estudamos e estudamos mais ainda, ao ponto de saber os contornos mais ocultos da lei, mas parece que não está acessível a quem detém o poder (ah esse maldito privilégio!) e finge descoonhecer esses contornos.

Logo vos pergunto: será que quando estivermos prestes a morrer, somente então, saberemos qual seria a porta que deveríamos entrar ou descobriremos que na verdade não existe porta alguma e que estamos encarcerados em um cômodo sem porta e a única luz que entra vem de fora, mas lá fora nunca fomos e pensávamos que estávamos livres, logo escravizados com manias de senhores feudais iluminados pela luz que não nos pertence?

Thiago M. Minagé é Doutorando e Mestre em Direito. Professor de Penal da UFRJ/FND. Professor de Processo Penal da EMERJ. Professor de Penal e Processo Penal nos cursos de Pós Graduação da Faculdade Baiana de Direito e ABDConst-Rio. Professor de Penal e Processo Penal na Graduação e Pós Graduação da UNESA. Coordenador do Curso de Direito e da Pós Graduação em Penal e Proceso Penal da UNESA/RJ unidade West Shoping.. Autor da Obra: Prisões e Medidas Cautelares à Luz da Constituição publicado pela Lumen Juris no ano de 2013. Autor de inúmeros artigos jurídicos. Advogado Criminalista.

Fonte: http://justificando.com/2015/02/28/diante-da-leieloucura-de-pensar-diferente/

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